Hoje, 06/11/2010, comemora-se o centenário de nascimento de um dos mais brilhantes brasileiros e certamente um jurista de hierarquia igualável a Pontes de Miranda e Norberto Bobbio, o Professor Miguel Reale, criador, dentre outras, da Teoria Tridimensional do Direito.
O site de notícias jurídicas Migalhas, publicou uma matéria sobre a vida deste grande brasileiro. Confira a íntegra da notícia:
Miguel Reale – Um nome na história do Brasil
Mais um pouco sobre Miguel Reale
Ao longo da vida de Miguel Reale foi manifesta a sua crença na organização da sociedade em associações civis para fomentar a cultura, tal como via nos Estados Unidos da América do Norte. Sob essa inspiração, fundou ainda no Instituto Médio Dante Alighieri o Grêmio Literário; foi um dos sócios-fundadores do Itanhaém Iate Clube, cujo Conselho Deliberativo presidiu por 28 anos consecutivos; foi o fomentador e organizador do Instituto Brasileiro de Filosofia, da Sociedade Interamericana de Filosofia, da Revista Brasileira de Filosofia.
Embora a prolífica obra e o consistente legado sugiram um estudioso e trabalhador incansável, em suas Memórias vemos Miguel Reale defender o descanso do domingo como necessário ao próprio trabalho árduo na semana, assim como uma noite bem dormida.
Para o repouso semanal escolheu uma pequena propriedade rural em Diadema-SP, o Sítio São Miguel, onde passava os domingos. Nesse sítio prezava receber amigos, andar a cavalo, por-se em contato com suas raízes rurais. Já para as férias escolheu Itanhaém, a tranquila cidade do litoral sul paulista, onde a família tinha uma casa.
Espírito sensível, produzia versos para celebrar os grandes momentos da vida: o nascimento dos filhos, dos netos, o restabelecimento de uma neta que caiu da escada, o fim da Cachoeira de Sete Quedas pela construção da Usina de Itaipu.
Sempre foi um intelectual ligado a questões práticas, muitas vezes vistas como distantes da pauta filosófica. Sob esse viés tratava, em seus artigos na Folha de S. Paulo e depois no Estado de S. Paulo, de temas bem concretos e cotidianos, como a vocação turística da cidade de São Paulo; a sugestão para que o 5º ano do bacharelado em Direito fosse organizado em áreas de especialidades, a serem escolhidas pelos próprios estudantes, “em função de suas vocações”; a religião, a amizade, a morte, e tantos outros.
De todos os seus escritos e do desenho de sua própria trajetória depreende-se que nutria inabalável crença no poder da vontade individual, o que pode ser ricamente ilustrado por trecho do discurso proferido por ocasião de sua posse na Academia Paulista de Letras, aos 5 de outubro de 1977: “Dou razão a Cícero quando recusa a tese estóica da subordinação da vida humana a inelutáveis processos naturais, proclamando, como bom romano, o valor autônomo da voluntas: ‘Est autem aliquid in nostra potestate’, ou seja, ‘apesar de tudo, há sempre algo em nosso poder de querer’.”
Miguel Reale, um nome em nossa História
Miguel Reale, tendo participado dos grandes momentos políticos brasileiros, tendo contribuído sobremaneira para a transformação do pensamento jurídico no Brasil, para a sua pesquisa e seu ensino, trabalhado proficuamente pela inserção da filosofia em nossa cultura, inseriu seu nome em nossa História.
Mais uma vez, são às suas Memórias que recorremos: “Mas, afinal, que é a existência senão assistir a um desfile de presenças que vão se tornando ausências ou lembranças, até sobrevir o dia em que de nós só restará nome e saudade no coração dos que continuam a desfilar?”
Anexo 1 – Formação
Em 1921 seu pai resolveu matriculá-lo no Instituto Medio Dante Alighieri na Capital paulista, colégio fundado pela colônia italiana para que os italianos e seus descendentes pudessem manter as tradições pátrias. Miguel Reale inicialmente foi interno no Colégio, passando a semi-interno quando a família mudou-se para São Paulo. Ao entrar no Colégio conheceu aquela que viria ser sua mulher, Filomena Pucci. Todas as aulas eram ministradas em italiano, idioma que Miguel Reale não conhecia, o que fez com que tivesse que repetir a quarta série elementar. Não era só o idioma que era italiano, mas todo o programa: estudava-se geografia italiana, história italiana, literatura italiana, e assim por diante. Daí merecer destaque a visão do já convicto estudante, que sentia falta de disciplinas que abordassem temas brasileiros. Ao lembrar-se do diretor e seus pendores para declamar “os versos patrióticos de Carducci” e “as insurreições lombardas ou as glórias de Bolonha”, conta-nos que embora se comovesse, “sentia falta de um professor que, com igual entusiasmo, me lesse os cantos de Gonçalves Dias ou de Castro Alves”.
Sua identificação com a pátria era tanta que sua primeira conferência, proferida no Grêmio Literário Dante Alighieri, a primeira associação por ele criada e presidida, versou sobre o poeta árcade brasileiro Cláudio Manuel da Costa e a Escola Mineira.
Mais tarde, semeados entre seus trabalhos jurídico-filosóficos, haveria sempre textos dedicados a grandes nomes de nossa literatura. São de sua lavra dois exemplares integrantes da Coleção Afrânio Peixoto, editada pela Academia Brasileira de Letras: em um deles, o opúsculo Das Letras à Filosofia, reunião de artigos acerca de temas distintos, merece destaque o trabalho em que, a partir de análise de trechos de Os Lusíadas, de Camões, Miguel Reale defende que Portugal viveu, sim, ainda que à sua moda, um Renascimento das idéias e das artes.
Foi a essa época que Miguel Reale recebeu aquele que viria a ser o primeiro prêmio em sua carreira, em um concurso ainda no 2° grau.
Ao longo de sua profícua carreira, muitas os outros escritores de nossa literatura merecerão sua atenção. Assim será com o trabalho sobre Gonçalves de Magalhães, o poeta romântico, sobre A Filosofia na Obra de Machado de Assis, sobre A Face Oculta de Euclides da Cunha, com suas inúmeras referências a Gilberto Freire e a João Guimarães Rosa, com seu perfil de Menotti Del Picchia e tantas outras remissões que fará, ao longo de suas obras, a pensadores nacionais.
Mas voltemos à sua formação.
Terminados os estudos no Instituto Medio Dante Alighieri, Miguel Reale ingressou nas Arcadas, a Faculdade de Direito de São Paulo, em 1930, ano de efervescência política no país. Iniciou-se, assim, com a faculdade, sua intensa participação na vida político-partidária brasileira.
Sobre as aulas na velha Academia de Direito conta que eram proferidas à moda antiga, “verdadeiras conferências a um auditório não raro desatento, à espera da ‘sebenta’ a ser lida na véspera dos exames”. Como é sabido, na ausência de cursos de Filosofia, Sociologia ou Letras no país, ao curso jurídico afluía toda a espécie de vocação para as ciências humanas, uma das causas do desinteresse percebido pelo arguto aluno.
Ainda na faculdade tomaria parte na Revolução Constitucionalista e escreveria seu primeiro livro, O Estado Moderno, marco do início de sua longa e profícua trajetória como pensador de rumos para o Brasil.
Anexo 2 – A família que formou
Miguel Reale casou-se em 11 de setembro de 1935 com Filomena Pucci, filha de Raquel Lombardi Pucci e José Pucci, família de origem da Calábria, no sul da Itália. Filomena sempre foi conhecida como Nuce, apelido abrasileirado por Miguel a partir de Nuccia, abreviação de Filomenuccia.
Ebe, a primeira filha, nasceu em junho de 1936 e foi batizada em homenagem à Grécia, início de toda a civilização Ocidental. Dedicou-se ao estudo de História e é casada com Paulo Ferreira de Souza Filho.
Em janeiro de 1941 nasceu Lívia Maria, que recebeu o nome em homenagem à civilização romana, tendo cursado Letras neolatinas. Em temperamentos, no entanto, o orgulhoso pai explica, em suas Memórias, que eram o inverso: Lívia, loura e de feições frágeis, era sonhadora. Ebe, por sua vez, morena de olhos verdes, caracterizava-se por espírito decidido e prático.
A 18 de abril de 1944 nasceu Miguel, caçula e único filho varão. Graduado em Direito, desde cedo optou por dedicar-se a área criminal. É casado com a também advogada Judith Martins Costa.
Miguel Reale orgulhava-se da família, que com o passar dos anos completou-se com a chegada dos netos Thaís, Eduardo e Beatriz, filhos de Livia Maria, e Luciana, filha de Miguel Reale Júnior.
Em 1973 Livia Maria e seu marido Antonio Carlos de Camargo Ferrari faleceram em um incêndio em um hotel em Copenhagen. Nuce e Miguel assumiram a tutela e a educação dos três filhos do casal, que criaram como filhos.
O casal chegou a completar 63 anos de casados.
Os netos, Thais, casada com Ciro Naufel Filho, Eduardo, casado com Maria Silvia de Alcaraz Reale, Beatriz, casada com Silas Kok Ribeiro e Luciana, ao lado dos bisnetos Leonardo, Anna Lucia, Henrique e Lívia alegraram os últimos anos de vida de Miguel, na casa em que ele continuou vivendo após a morte de Nuce, em 4 de maio de 1999, onde gostava de reunir a família e amigos.
Após sua morte nasceram mais dois bisnetos, Estela e Luca.
A Política
Ao longo de toda sua vida Miguel Reale participou ativamente da política partidária brasileira. Assim, em 1932, ainda nos bancos acadêmicos, tomou partido na Revolução Constitucionalista paulista, tendo servido como soldado no Batalhão Ibrahim Nobre. O relato que faz, em suas Memórias, acerca da celebrada insurreição, impressiona pela sobriedade, e sobreleva elementos pouco lembrados por outros que a registraram.
Logo em seguida vêm os anos de sua intensa atividade no integralismo, movimento que atraiu políticos de sólida formação teórica, em razão de apresentar programa com solução racional para os ingentes problemas brasileiros.
Nas razões que o levaram ao movimento, percebe-se a luta que marcaria sua existência, a de trazer o “Brasil real” para mais próximo do “Brasil ideal”. Filiado à Ação Integralista Brasileira, tornou-se rapidamente Secretário Nacional de Doutrina, cargo que o fazia viajar por todo o Brasil, pregando os seus ideais – talvez tendo nascido aí a percepção do talento para explicar, ensinar, pregar.
Demitido do cargo em 1937, “acusado por grupos integralistas de ter ideias muito liberais”, fundou um jornal, Acção, que chegou a ser matutino e ter oficinas próprias, mais uma demonstração de sua vocação extremada e inquestionável para a disseminação de idéias, o que é também, em amplo sentido, a vocação para o magistério.
Em 1938 exilou-se em Roma, em razão das perseguições políticas getulistas (estávamos em pleno Estado Novo) aos antigos integralistas, caídos em desgraça; o período possibilitou a gestação de sua tese universitária denominada Fundamentos do Direito, em que já se esboçava, ainda que não com esse nome, a sua grande contribuição à doutrina jurídica, a “Teoria Tridimensional do Direito”.
Sua trajetória profissional seria marcada por constantes interrupções para atender ao chamado da política. É assim que já no início de 1942, embora “imerso no estudo dos pressupostos de uma compreensão do Direito”, teve que interromper suas recentes atividades de professor universitário no Largo de São Francisco para integrar o “Departamento Administrativo do Serviço Público” em São Paulo, atendendo a convite feito pessoalmente pelo então presidente Getúlio Vargas.
Em 1944 recebeu o segundo convite para comparecer ao Catete, para audiência pessoal com o presidente Vargas, que desta vez solicitou-lhe sugestões para a revisão da Carta de 1937. Estava, no entanto, convencido da inviabilidade de qualquer saída mediante simples revisão constitucional, propondo então nova ordem jurídica, razão pela qual suas sugestões não foram aceitas.
Findo o Estado Novo, fundou, em 1945, ao lado de Marrey Jr., o PPS, Partido Popular Sindicalista, criado para fazer frente ao PSD, o Partido Social Democrático, que reunia os “herdeiros do Estado Novo”. Logo em seguida, ocorreu-lhe juntar as pequenas forças que não estavam agremiadas sob os dois partidos dominantes – PSD e UDN –, surgindo assim o PSP – Partido Social Progressista.
Por ocasião da renúncia de Jânio Quadros à presidência da República, em 1961, deu entrevistas e proferiu conferências em defesa do parlamentarismo, material que deu origem ao livro Parlamentarismo Brasileiro.
Em 1947, ocupou a Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo; nesse mesmo ano, trabalhou pela criação do município de Diadema, no grande ABC, região onde tinha um sítio.
Em 1949 foi reitor da Universidade de São Paulo, durante cerca de 9 meses, tempo suficiente para que trabalhasse pela descentralização do campus, tendo sido o responsável pelo lançamento da pedra fundamental da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
Em junho de 1951, foi nomeado por Getúlio Vargas para defender posição brasileira – a manutenção de um salário mínimo para os trabalhadores em plantações – perante a OIT – Organização Internacional do Trabalho, órgão da ONU – naquele que entendeu como “um dos momentos mais importantes da minha vida”. Importa dizer que conseguiu fazer prevalecer a tese defendida pelo governo brasileiro, em votação no plenário do órgão, derrubando aquela defendida pelos países europeus, tendo sido missão plenamente exitosa.
Em 1958 foi nomeado “Consultor Geral da Light”, em São Paulo.
Em 1963 foi Secretário Estadual de Justiça no governo de Adhemar de Barros, atuação que se destacou por ter firmado convênios com iniciativas privadas de atendimento a menores carentes, deixando a cargo da Secretaria apenas os menores infratores; por ter imprimido nova orientação ao Manicômio Judiciário, tendo planejado instituição destinada apenas a essa função, com a construção de um conjunto psiquiátrico (Franco da Rocha); e tendo, pela primeira vez, procedido à demarcação das terras devolutas no Estado de São Paulo.
Em 1969 esteve novamente à frente da reitoria da USP, desta vez por 4 anos, dedicando-se, dentre outros feitos, à promoção da normatização da Reforma Universitária, permitindo que as unidades tivessem mais autonomia e democracia. Dedicou-se, ainda, à ampliação da área de esportes, com a construção da raia para remo e da pista de atletismo e à ampliação dos serviços de atendimento médico aos alunos e à comunidade. Foi o responsável pela construção da Torre do Relógio.
Em 1972, foi consultor do projeto da Usina de Itaipu, desenhando o modelo jurídico que previu a construção em condomínio entre Brasil e Paraguai, com a preservação das respectivas soberanias.
O Direito
Como já visto, Miguel Reale cursou a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, tendo ali ingressado em 1930.
Ao longo de toda sua existência, pautou-se por “teorizar a vida e viver a teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação”. Com essa diretriz, lançou-se aos primeiros escritos e estudos a partir de preocupações com os rumos para o Estado brasileiro, publicando seu primeiro livro (O Estado Moderno) já em 1934, quando ainda estava no último ano da graduação.
Terminado o curso, iniciou-se na advocacia na companhia de colegas. Para incrementar o orçamento, recorreu ao magistério, “dando aulas de Introdução ao Direito numa Faculdade livre situada à Rua Brigadeiro Tobias, que teve poucos anos de vida, em duas Escolas de Comércio, além de aulas particulares de Latim, Italiano e Francês.”
Se o início da vida profissional foi árduo, propiciou, dentre outros benefícios, que provasse de seu gosto e pendor pelo magistério, que o distinguiria ao longo da vida.
Em 1939 foram publicados editais para dois concursos na Faculdade de Direito do Largo de Francisco, um para a cátedra de Direito Constitucional, outro para a de Filosofia do Direito. Optou por disputar a cátedra de Filosofia, onde começou a ser escrita sua grande história.
Para o concurso concluiu o trabalho Fundamentos do Direito, em que examinava as interpretações do Direito dominantes nas décadas que lhe precederam, “a fim de verificar se do diálogo histórico das idéias não emergia uma diretriz nova”. Já no último capítulo dessa obra exsurge aquela que seria batizada, anos mais tarde, de “Teoria Tridimensional do Direito”, e que deitaria raízes no pensamento jurídico nacional.
Para o concurso existia, na Faculdade, um pré-arranjo velado para que fosse aprovado um filósofo tomista, linha diversa do neokantismo a que Miguel Reale filiava-se. Em nítida afronta à justiça, a banca examinadora dividiu-se assim: os dois professores da Casa reprovaram-no, enquanto os três que provinham de outras instituições aprovaram-no. Com esse resultado, o corpo docente da Faculdade viu seus objetivos pré-traçados frustrados, razão pela qual anularam o concurso arbitrariamente. Ciente do ultraje de que havia sido vítima, Miguel Reale lutou por sua cátedra – judicial e administrativamente –, e obteve êxito.
Sua posse na cátedra deu-se em maio de 1941, e afora algumas pequenas interrupções em razão de sua intensa atividade política, permaneceu ministrando suas aulas na Academia do Largo de São Francisco até 1980, data de sua aposentadoria compulsória.
Fonte: Migalhas
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