Tema relevante e atual diz com o confronto entre normas constantes do que formalmente se entenda como lei, de um lado, e normas constantes dos regimentos internos dos tribunais, de outro.
O adequado enfrentamento da questão parte da premissa de que normas de processo, em sentido lato, podem basicamente ser de três naturezas. Um primeiro grupo regula o procedimento e, portanto, são ditas procedimentais. Não raro, a elas se agrega o qualificativo “meramente”. Isso, de um lado, enfatiza a circunstância de que o procedimento – entendido como a sequência de atos teleologicamente encadeados – é o aspecto formal do processo. Mas, de outro lado, isso também pode sugerir que essas normas “meramente” procedimentais tenham menor relevância, justamente porque ligadas à forma e não ao conteúdo. Isso é um equívoco: as formas processuais não raro são confundidas como excesso de formalismo e, portanto, como fator de potencial retardamento da prestação jurisdicional; quando, na verdade, são penhor de legalidade. De um modo ou de outro, a competência legislativa em matéria procedimental é concorrente entre União e Estados da Federação (art. 24, inciso XI e parágrafos).
A segunda categoria de normas processuais abrange as que disciplinam as posições emergentes da relação jurídica processual. Elas estabelecem poderes, sujeições, faculdades, ônus e deveres entre os diferentes sujeitos do processo. Regulamentam o aspecto substancial do processual, que é a relação jurídica retro mencionada. A competência para legislar nessa matéria é exclusiva da União (art. 22, I da CF).
Uma terceira categoria de normas abrange as que regulam a organização judiciária. Poder-se-ia eventualmente negar seu caráter processual, porque seu objeto seria apenas a estrutura e funcionamento dos órgãos competentes para o exercício da jurisdição. Mas, sua interação com temas processuais – em particular com o princípio do juiz natural e com as normas sobre competência – sugere que tais normas sejam tratadas no cotejo com as já mencionadas. São diversas as fontes normativas desse tipo de norma, partindo da Constituição Federal, passando por leis federais e estaduais e, no que aqui interessa, chegando aos regimentos internos dos tribunais.
Isso não quer dizer, contudo, que regimentos internos se ocupem exclusivamente de normas de organização judiciária. Pelo contrário, embora a multiplicidade e a diversidade de regimentos internos impeçam assertivas muito categóricas, parece lícito afirmar que as normas regimentais vão muito além da disciplina de seus órgãos internos. Elas efetivamente contêm normas procedimentais e processuais, sendo exemplo mais significativo disso o Regimento do Supremo Tribunal Federal, conforme se anuncia em seu art. 1º e se cumpre em várias de suas disposições seguintes.
Quanto ao STF, o § 3º do art. 119 da Constituição Federal de 1969 era expresso ao autorizar que o regimento interno contivesse normas processuais para os feitos de sua competência originária. Sob a égide dessa ordem constitucional, aquela Corte entendeu que o regimento era equiparado à lei (RTJ 106/592). Mais adiante, contudo, entendeu que eventual conflito entre normas legais e regimentais deveria considerar qual a matéria regulada, de tal sorte que a lei prevaleceria quanto a tema processual e o regimento no tocante ao funcionamento dos tribunais (RTJ 177/102).
A Constituição vigente não tem dispositivo análogo ao do art. 119 da precedente, mas isso não parece ser motivo suficiente ou plausível para dizer que as normas regimentais com conteúdo processual não teriam sido recepcionadas pela nova ordem constitucional. Com efeito, dizer-se que tais normas estariam revogadas seria, em relevante extensão, abrir-se lacuna na disciplina dos processos de competência originária daquela Corte. Ora, considerando que o remédio não poderia se tornar inacessível pela falta de regra processual, forçoso seria reconhecer que o STF – até que o Legislador pudesse estatuir disciplina diversa – teria a necessária prerrogativa de ditar as regras de processo; analogamente ao que ocorreu, durante algum tempo, no caso do mandado de injunção, apenas para ilustrar. Portanto, pragmaticamente acabaria mesmo por caber ao STF a disciplina processual diante da lacuna que pudesse resultar da não recepção das regras processuais contidas no regimento interno.
Mais ainda: mesmo sob a égide da Constituição Federal vigente, o regimento do STF continuou a ser alterado. Ainda que isso, para argumentar, tenha ocorrido para adaptação às modificações legislativas (v.g., Emenda Regimental 21, de 30/4/7), não parece que o STF esteja disposto, a esta altura, a negar sua própria competência normativa.
Assim, firmada a premissa de que as normas do regimento do STF editadas sob aquela égide tenham status de lei, seu confronto com as normas editadas após pelo Legislador deve se pautar pelos mecanismos usuais de superação de conflito de normas no tempo. Não há qualquer razão para que seja diferente e qualquer outra solução (a privilegiar o regimento ou a Lei) soaria arbitrária. Dessa forma, ou bem a norma posterior revoga expressamente a anterior; ou bem a revogação só ocorrerá se a regra nova for incompatível com a antiga.
No caso de recursos cabíveis em processos de competência originária, o simples advento da lei nova não é, seguramente, suficiente para dizer que a omissão do Legislador seja determinante da revogação de institutos outrora constantes do regimento interno. Isso vale em relação à lei 8038/90, que se limitou a revogar expressamente apenas os dispositivos citados no respectivo art. 44. Nem se pode dizer que referida lei teria disciplinado de modo integral os processos de competência originária no STF e no STJ, de sorte a revogar implicitamente qualquer outra disposição normativa sobre o assunto. Fosse assim e parte expressiva dos regimentos dessas duas Cortes teria que ser reputado derrogado. Aliás, a vigência de dispositivos regimentais atesta a circunstância de que a disciplina legal não foi exaustiva.
Em matéria recursal, a tipicidade que aí vigora deve ser encarada sob dupla perspectiva: da mesma forma que não existe recurso sem previsão, a exclusão de recurso previsto deve ocorrer de forma explícita e não ser simplesmente presumida. Além disso, é preciso considerar que os processos de competência originária – por essa óbvia razão – não estão sujeitos a outro grau de jurisdição e, portanto, a interpretação a ser dada, em caso de eventual dúvida, deve ser em prol da duplicidade de exames, e não da respectiva restrição; tanto mais se o valor em jogo for a liberdade.
Autor: Prof. Dr. Luiz Flávio Yarshell
Fonte: Revista Carta Forense (junho/2013)
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